sábado, janeiro 2

Clara Nunes: A Eterna Guerreira


“Se vocês querem saber quem eu sou
Eu sou a tal mineira
Filha de Angola, de Kêto e Nagô
Não sou de brincadeira

Canto pelos sete cantos

Não temo quebrantos, porque eu sou guerreira

Dentro do samba eu nasci,
me criei, me converti,
e ninguem vai tombar a minha bandeira(2x) ô,ô,ô

Bole com samba que eu caio, e balanço o balaio, no som dos tantãs.

Rebolo que deito e que rolo, e me embalo e me embolo nos balangandãs.

Bambeia de lá, que eu bambeio nesse bamboleio que eu sou bambambã.

Que o samba não tem cambalacho, vai de em cima em baixo, pra quem é seu fã.

E eu sambo pela noite inteira, até amanhã de manhã, sou a mineira guerreira, filha de Ogum com Iansã”.

(letra do samba Guerreira, gravado por Clara Nunes em 1978)


Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, nasceu em 12 de agosto de 1943, em Caetanópolis, na época um pequeno distrito chamado Cedro, pertencente ao município de Paraopeba, no interior do estado de Minas Gerais.
Foi a sétima filha do casal Manuel Ferreira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes. O pai de Clara, seu Mané Serrador, como era mais conhecido pelos amigos e vizinhos, trabalhava como marceneiro na fabrica de tecidos Cedro & Cachoeira. Seu Mané também era violeiro e ávido participante das Folias de Reis da região, infelizmente veio a falecer em 1944, quando Clara tinha somente um ano de idade.
Cinco anos depois faleceria sua mãe, sendo a pequena órfã criada pelos seus irmãos mais velhos Dindinha e José, mais conhecido como José Chilau.
Aos nove anos de idade Clara começa a acompanhar a irmã em suas aulas de catecismo na Igreja de Cedro, cantando no no coral. Segundo a própria Clara, nessa época no coral da pequena igreja, começava o amor pela música e a descoberta do prazer em cantar, tornando-se já nessa idade ouvinte de programas de rádio, onde brilhavam cantoras como Carmem Costa, Ângela Maria, Elizete Cardoso e Dalva de Oliveira, principais artistas da Radio Nacional, no Rio de Janeiro; a pequena Clara tornara-se fã das Cantoras do Rádio, e essas artistas sua principal influência musical.
Nessa idade apenas, surgia sua primeira oportunidade de mostrar seu precoce talento para o canto. Clara vence o primeiro Concurso de cantores mirins na rádio de Paraopeba, cantado "Recuerdos de Ypacaraí"; nesse concurso ganhou como prêmio um vestido azul.
Aos quatorze anos começa a trabalhar como tecelã na fabrica Cedro & Cachoeira. Nesse mesmo ano aconteceria um fato que iria marcar radicalmente a sua vida. O irmão, José Chilau, num acesso de fúria, assassina com uma facada um rapaz que andava se vangloriando de haver conseguido “algo a mais” de Clara, do que simples beijinhos e abraços.
José Chilau foi preso e Clara teve que ir embora de Cedro. Mudou-se para Belo Horizonte indo morar com outros dois irmãos, Vicentina e Joaquim. Empregou-se como operária numa fabrica e começou a estudar a noite. Por essa época Vicentina cantava num coral chamado Renascença; Clara logo começaria a acompanhar a irmã, tendo a chance de se apresentar em alguns programas de rádio com o nome artístico de Clara Francisca.
Em 1963, ainda trabalhando como operária muda seu nome artístico para Clara Nunes. Nesse mesmo ano participa do Concurso “A voz de ouro da ABC” (Rádio ABC), cantando “Serenata do Adeus” de Vinicius de Morais, sendo sagrada campeã, chegando a participar da etapa nacional do concurso realizada em São Paulo. Durante três anos Clara se apresentou na Rádio Independência de Belo Horizonte, sendo considerada por três vezes a melhor cantora de Minas Gerais. Trabalhava também como crooner em bares e clubes de Belo Horizonte.
Fez sua estréia na televisão, no programa de Hebe Camargo. Um ano depois surge a oportunidade de se tornar apresentadora; Clara passou a apresentar um programa musical na emissora mineira Itacolomi, o programa se chamava “Clara apresenta”, trazendo grandes figuras do cenário nacional como Altemar Dutra, Ângela Maria entre outros.
Em 1965 muda-se para o Rio de Janeiro, indo morar em Copacabana.
Nessa época tinha inicio no Brasil, sobretudo nas grandes capitais a superação da televisão pelo rádio. Assim, vários artistas que antes faziam um grande sucesso no rádio, como Chacrinha, José Messias, Francisco Petrônio, estreavam na tv. No Rio, Clara teve a oportunidade de cantar em vários desses programas televisivos, surgindo daí, nesse mesmo ano, a chance de gravar com outros artistas da gravadora Odeon, um LP de boleros, a música mais em voga nas rádios. Essa foi a primeira experiência de Clara num estúdio de gravação.
Depois desse trabalho a Odeon contrataria Clara para o seu primeiro trabalho como cantora em vinil, o LP “A voz adorável de Clara Nunes”. Nesse disco, o repertório dividiu-se em sambas e boleros. O disco foi um fracasso de vendas, sendo que a própria cantora em entrevista, alguns anos depois, diria que cantou como uma funcionaria da Odeon, sem a menor possibilidade de escolha do repertório e no arranjo das músicas.
Outra expressão musical que ganhava cada vez mais a atenção do grande público, inclusive internacionalmente, era o samba. Isso se devia ao fato de os morros, as favelas no Rio de Janeiro, tornarem-se tema não só do cinema nacional, do então chamado Cinema Novo, que influenciado pelo Neo-realismo Italiano, buscava mostrar a realidade social das populações marginalizadas, mas também da indústria fonográfica brasileira. Desse modo, um número crescente de universitários e intelectuais descobria nas favelas cariocas, o “berço do Samba”, local onde compositores como Cartola, Nelson Cachaça, já haviam alcançado certa notoriedade.
Clara seguiu a tendência dos habitantes do asfalto que sobem o morro, participando das rodas de samba. A convite de um amigo, do cantor e compositor Ataulfo Alves, passa a freqüentar esse meio.
Devido a essa nova influência grava em 1968, pela Odeon, o LP Você Passa e Eu Acho Graça, no qual o samba principal composto por Ataulfo Alves e Carlos Imperial, Você passa e eu acho graça, alcançaria o primeiro lugar nas rádios cariocas. Em 1969, gravaria Clara Nunes: A beleza que canta, LP que trazia um repertório bem variado.
Ainda nesse ano e nos três anos seguintes, Clara Nunes teve a oportunidade de participar de diversos festivais da canção como os festivais da TV Record, palco onde também surgiam artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes. Esses festivais aconteceram em plena ditadura militar, sendo que alguns tinham um tom contestador, através de composições que na maioria das vezes afrontavam o regime ditatorial de forma metafórica, como no samba “Pra que obedecer”, composição de Paulinho da Viola e Luis Sérgio Bilheri, interpretado por Clara no "I Festival da Canção Jovem de Três Rios", no qual ganhou o primeiro lugar.
Em 1970, viajou para Luanda, capital da Angola na África, para uma série de apresentações juntamente com outros artistas brasileiros. Foi nesse ano que Clara passa a se afirmar na interpretação do samba, graças ao amigo Ataulfo Alves. Nos anos 60, a imagem de Clara Nunes podia ser vista na capa de seus LPs ou nas paginas de revistas de artistas com um “look”, bem característico da época: cabelos alisados e pintados roupas no estilo Jovem Guarda.
Então o marido de Clara Aldeozon Alves, produtor musical da Odeon, lhe propôs uma mudança radical na carreira artística, que não se restringia apenas ao repertório, ou a forma de vestir-se, mas também na definitiva escolha de um caminho de acordo com a dimensão espiritual, que ela começava a vivenciar mais intensamente naquele período da sua vida.
Clara tornara-se no inicio dos anos 70 adepta da Umbanda e do Candomblé. Essa escolha foi fruto do interesse crescente da artista pelas religiões afro e pela influência de uma de suas irmãs que era espírita. Desse modo Aldeozon criou para Clara uma imagem mais ligada às raízes do povo brasileiro. A nova Clara Nunes tinha agora os cabelos soltos e encaracolados, vestindo o branco das rendas dos vestidos das baianas, transmitindo um ar brejeiro e bem brasileiro.
A mudança na escolha do repertorio de seus discos também foi significativa. Neles pode-se ouvir as mais variadas formas de samba: samba-enredo, samba de roda, samba-canção, marchas de Carnaval (dos mais diversos autores, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, compositores da Portela, sua escola de samba do coração), ao lado de canções de domínio público (folclore) e religiosas (Candomblé).
Assim sequem-se os seguintes LPs: Ê baiana – de 1971,com o sucesso “Ê baiana”, principalmente nos bailes de Carnaval daquele ano; Clara Clarice Clara – de 1972; o disco teve como destaques as canções, "Morena do Mar" ,de Dorival Caymmi, " Tributo aos Orixás" de Mauro Duarte, Noca e Rubem Tavares e a faixa-título "Clara Clarice Clara", de Caetano Veloso e Capinam; em 1973, sai Clara Nunes.
Em 1974 lança o LP Alvorecer, com o sucesso estrondoso de “Conto de Areia”. Com esse samba é que Clara atingiria o sucesso e uma marca histórica na vendagem de discos, sendo a primeira cantora brasileira de samba a atingir o número de 800 mil cópias vendidas. Antes disso existia o estigma na indústria fonográfica brasileira de que cantoras, sobretudo de samba não eram sucesso de venda; investir grandes somas na produção e distribuição de discos de mulheres cantando samba era uma canoa furada!
O sucesso da cantora não se limitava ao Brasil; tem o inicio a sua carreira internacional , fazendo apresentações em Lisboa a convite de rádios portuguesas e também na Suécia, apresentando-se juntamente com a orquestra sinfônica da rádio nacional de Estocolmo.
Em 1975, casa-se com o compositor e poeta Paulo César Pinheiro, que segundo ela era o grande amor de sua vida. O casal era avesso a badalação do meio artístico, preferindo passar os períodos de folga, entre shows e gravações, num sitio afastado da cidade do Rio. Paulo compôs diversas canções para a esposa, presentes nos álbuns seguintes: Claridade – 1975 (com o sucesso “O mar serenou”), Canto das três raças – de 1976; As Forças da Natureza – de 1977 (incluindo a canção “A flor da pele”, primeira composição de Clara), e Guerreira – de 1978.
O ano de 1979 seria marcado por um triste acontecimento: Clara, grávida de quatro meses, perde o bêbe, devido a uma queda. Era o terceiro aborto espontâneo sofrido pela cantora e fatalmente aquele que a impediria definitivamente de ser mãe. Em decorrência desse incidente, Clara teve que submeter-se a uma histerectomia, ou seja, a retirada do útero. Clara teve fortes abalos emocionais, já que a maternidade era a grande obsessão de sua vida. Daí em diante resolveu direcionar todas a suas energias para a carreira artística.
Em 1980, Clara juntamente com Dorival Caymi, Djavan, Chico Buarque, João Bosco, Elba Ramalho e Martinho da Vila, fazem uma série de apresentações em Angola; seria o seu retorno ao continente africano. Na volta da viagem Chico Buarque lhe homenageia com uma canção “Morena de Angola”, que faria parte do novo LP de Clara, Brasil Mestiço.
A aproximação de Clara Nunes com Chico Buarque marcaria naquele momento uma nova postura da cantora com relação a vida política do pais. Clara mostrava-se engajada politicamente, e em entrevistas a revistas mostrava-se indignada com o regime militar. Naquele ano participou do disco de Chico Buarque, e passou a incluir em seus discos repertorio com canções com cunho mais político e social (gravou “Apesar de você”, composição do próprio Chico).
O engajamento de Clara causou furor em certos segmentos do governo militar, os quais já chamavam Clara de subversiva. A Odeon, tentando contornar a situação obriga a cantora, sob pena de quebra de contrato, a participar de uma coletânea de hinos militares, Clara gravaria o hino da Marinha.
A atitude de Clara Nunes e de certos artistas da MPB, serviam de voz ao clamor do povo brasileiro por uma abertura política significativa. Essa pressão fez com que o Regime Militar já passasse a falar de uma anistia ampla e irrestrita, que possibilitasse entre outras coisas o retorno dos asilados políticos aos Brasil.
A mobilização de amplos segmentos da sociedade descontentava os militares integrantes da chamada “linha dura”, contrários a qualquer forma de democratização popular. Assim o Regime Militar se dividia em dois segmentos, um favorável a redemocratização do pais e outro contrário a essa iniciativa. O resultado deste embate entre as duas correntes políticas marcaria o ano de 1980, com um fato marcante, o atentado terrorista na festividade de 1° de maio, dia do trabalhador no show do Riocentro, no Rio de Janeiro.
Os dois últimos anos de vida de Clara Nunes foram intensamente produtivos: em 1981 lançaria o LP Clara, com um sucesso nas rádios do pais, “Portela da Avenida”. Em 1982, a cantora se mostraria mais afastada do samba, aproximando-se da MPB, gravando em seu último disco, "Nação", canções da autoria de João Bosco e Aldir Blanc, “Nação” e “Cinto cruzado” de Guinga, entre outros. A critica seria implacável com a cantora, afirmando que ela estava se afastando de suas raízes no samba e enveredando por um gênero não tão popular. Nesse ano Clara ainda faria uma série de shows no Japão.
No inicio de 1983, a cantora decide se submeter a uma cirurgia para se livrar de algumas varizes que a incomodavam muito, principalmente na sua atuação no palco. Assim, Clara internou-se na manhã do dia cinco de março na Clinica São Vicente no Rio de Janeiro.
O inicio da cirurgia transcorreu normalmente, o médico já havia terminado a primeira parte, e estava acabando de suturar a incisão da perna esquerda da cantora, quando notou que o sangue de Clara estava muito escuro; isso indicava falta de oxigenação no sangue; logo a equipe médica percebeu que a paciente não apresentava mais batimentos cardíacos, Clara sofrera uma parada respiratória. Tentaram fazer uma massagem cardíaca, logo interrompida para tentar a reanimação da cantora através de eletro choques. A tentativa foi bem sucedida e para alivio geral da equipe médica os batimentos cardíacos foram restabelecidos.
Porém a cantora não reagia a estímulos, pois estava em coma profundo. Naquele mesmo dia a paciente foi submetida a uma tomografia, em um dos dois únicos Tomográfos Computadorizados existentes no Rio naquela época. O objetivo era constatar a gravidade do dano causado no cérebro de Clara devido a falta de oxigenação. Constatou-se que a área afetada no cérebro era muito extensa, causando um grande edema cerebral.
Na verdade Clara sofreu aquilo que a medicina chama anafilaxia, mais conhecido como choque anafilático, ou seja, Clara Nunes sofreu uma reação alérgica a alguma substancia da anestesia. A anafilaxia causou um estreitamento das vias aéreas, causando a parada cardíaca e a falta de oxigenação no cérebro.
A cantora permaneceu por 28 dias em “coma”. Segundo o jornalista Wagner Fernandes, biografo da cantora, autor de “Clara Nunes – a Guerreira da Utopia”, a artísta teve morte cerebral cinco dias depois de entrar em coma. Acontece que em 1983, a medicina brasileira só reconhecia o paciente em coma, como definitivamente morto, quando este apresentasse a falência de todos os órgãos, sobretudo o coração. Atualmente é considerado como em óbito aquele paciente em coma, cujo cérebro parou de funcionar.
A dois de abril, na madrugada do sábado de Aleluia, os órgãos vitais de Clara pararam de e ela foi oficialmente considerada morta. Ela foi velada na quadra da escola de samba da Portela e no cortejo até o cemitério São João Batista, foi acompanhado por cerca de 50 mil pessoas.